Efeitos da colonização: sobrenome que você usa pode não ser o seu de verdade; entenda


Ferramenta de IA criada por artista de Brasília recupera nomes indígenas e africanos perdidos. Segundo historiadora, processos de violência do colonialismo resultaram em apagamento de memórias ancestrais. uisa
Arquivo/CNJ
De acordo com o governo federal, há três etnias principais na formação do povo brasileiro. Aos habitantes originais – os indígenas – foram somados africanos e europeus.
Mas em um país tão miscigenado, por que sobrenomes de origem indígena ou africana não são comuns❓
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De acordo com a professora Cristiane Assis, do departamento de história da Universidade de Brasília (UnB), a resposta é a colonização.
“Nós temos como resultado dessa constituição da nação um apagamento das memórias de famílias indígenas e de famílias negras. E isso ocorre pelos processos de violência aos quais esses sujeitos foram submetidos historicamente”, diz a pesquisadora.
Uma ferramenta de Inteligência Artificial (IA) criada pelo artista de Brasília Christus Nóbrega promete ajudar a recuperar nomes perdidos durante o período colonial. Em suas pesquisas, Nóbrega identificou que, ao substituir os nomes originais dos colonizados por sobrenomes europeus, os colonizadores buscavam desumanizá-los e controlar mais facilmente suas vidas.
O “Assistente Inteligente de Restauração Identitária” foi alimentado com uma base de dados de mais de 8 mil sobrenomes africanos e indígenas, acompanhados de seus significados e relações geográficas (veja mais abaixo como funciona).
“Esse trabalho foi meticuloso e exigiu a consulta de fontes históricas, documentos antigos e tradições orais, para garantir que os sobrenomes coletados fossem verdadeiramente representativos de suas culturas”, conta Nóbrega.
Apagamento histórico
Adriane Kariú é de família indígena
Arquivo pessoal
A artista visual Adriane Kariú, de família indígena, conta que seu povo foi considerado extinto no Ceará, onde nasceram seus ancestrais. Por isso, ela e os familiares não tiveram o direito de registrar os sobrenomes originais.
👉🏽O nome da artista visual registrado no cartório, quando nasceu, foi Adriane Matos Peres de Oliveira. Mas seu sobrenome indígena é Kariú.
“Meus ancestrais foram escravizados por um capitão chamado Domingos Álvares de Matos. Então, todos os indígenas da região foram batizados com nomes cristãos. Álvares de Matos é o meu sobrenome materno, porque esse novo nome indicava que essas pessoas eram propriedade desse capitão”, conta.
👉🏽 O caso de Adriane ajuda a explicar o que acontece com muitos nomes no Brasil. Em suas pesquisas, Christus Nóbrega descobriu que os nomes originários indígenas e africanos eram substituídos por nomes com referências católicas, características físicas, geográficas, ou relacionadas aos próprios escravizadores. Entre os sobrenomes mais comuns estão: “Santos”, “Cruz”, “do Carmo” e “de Jesus”.
Um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, o PL 803/2011, permite que afrodescendentes e indígenas possam incluir sobrenomes ancestrais em seus registros civis. No entanto, o texto aguarda sanção do Senado desde 2014.
“Essa dificuldade de conectar as nossas histórias para além da perspectiva do branco europeu vem justamente desse apagamento, das violências que foram vivenciadas. Então, é muito difícil que nós consigamos retomar um histórico de origem das nossas famílias quando as nossas famílias não têm uma origem europeia”, diz a professora Cristiane Assis.
Como usar a ferramenta de IA?
Certificado emitido em perfomance no Museu Nacional, em Brasília, após uso da ferramenta de IA que recupera nomes ancestrais
Reprodução
O criador da ferramenta de IA “Assistente Inteligente de Restauração Identitária” explica que, para começar o processo de “restauração de identidade”, basta acessar o link e iniciar a conversa:
A assistente virtual vai perguntar primeiro o seu nome e, em seguida, se você deseja honrar sua ancestralidade africana ou indígena;
Na sequência, ela irá perguntar se você sabe a origem exata de seus antepassados, para que ela explore essas referências e sugira sobrenomes que reflitam essa herança;
Caso você não saiba a origem exata, ela irá usar outro método para encontrar um sobrenome: a partir das qualidades subjetivas que a pessoa gostaria que seu novo sobrenome representasse. Ou no caso indígena, ajudará a identificar etnias de acordo com regiões geográficas;
Após apresentar sugestões e explicar o significado de cada sobrenome, você poderá escolher o que mais se identifica;
Se aprovar a escolha, será gerada a Certidão de Identidade Restaurada (veja imagem acima), contendo o novo sobrenome, os nomes de seus pais, e a data da restauração. O documento não tem valor legal, mas simbólico.
‘Cartório de Registro de Identidade Restaurada’
Christus Nóbrega e Ruth em performance “Cartório de Registro de Identidade Restaurada”
Divulgação
A ferramenta foi desenvolvida como parte de um projeto artístico de Nóbrega, a performance “Cartório de Registro de Identidade Restaurada”, que está sendo apresentada no Museu Nacional da República, em Brasília (veja imagem acima).
Durante a performance, o artista, sentado em uma mesa com uma máquina de datilografar, convida o público a participar da ação. Os visitantes, afrodescendentes, indígenas e descendentes, são convidados a sentar-se à mesa para receber suas novas certidões, que trazem as correções de sobrenome, de forma simbólica.
Ruth Venceremos foi uma das pessoas que foi à perfomance para entrar em contato com suas origens. Após usar a ferramenta, ela chegou ao nome Ruth Alafia Iamani.
“Como eu não sabia a origem de minha família, a ferramenta me perguntou quais características eu gostaria de destacar em meu sobrenome. […] Isso nos leva a refletir sobre quem somos, a complexidade da nossa história e os impactos profundos que a escravidão deixou em nossa trajetória coletiva”, diz Ruth.
📌A performance faz parte da exposição “Brasília: a Arte do Planalto”, que vai até 24 de novembro e celebra a história cultural da capital do país.
“Quando fui convidado para participar da exposição, comecei a refletir sobre o que é Brasília. Vejo a cidade como um grande projeto de futuro. […] Vivemos em um momento de reavaliação da nossa história nacional, onde precisamos encarar suas lacunas e omissões para que possamos construir um futuro mais justo e sólido”, diz Christus Nóbrega.
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