Brasileiros contam detalhes de fuga de conflito no Sudão: 40 horas em ônibus, barreiras com homens armados e sufoco na fronteira


Eles contam que passaram, por várias barreiras com guerrilheiros armados para sair de Cartum. Mais de 400 pessoas morreram no conflito. O atacante Paulo Sérgio abraçado com a filha na chegada ao Brasil após fugir do conflito no Sudão
Cristina Boeckel/ g1
Os brasileiros que estão entre os atletas e equipe do Al-Merreikh que escaparam do conflito que opõe o Exército e guerrilheiros no Sudão contaram quais foram os momentos mais difíceis da longa jornada entre o país e o retorno ao Rio de Janeiro, onde desembarcaram na manhã desta sexta-feira (28).
“Quando a gente acompanha pela TV, é uma coisa. Quando a gente passa, efetivamente, esses problemas na pele, é outra situação”, disse o treinador de goleiros Itamar Rodrigues da Silva.
Mais de 400 pessoas já morreram no conflito.
A fuga começou no domingo (23), quando o grupo saiu de Cartum, capital do país, em direção à fronteira com o Egito. O grupo, que reclamou da falta de ação do Itamaraty para retirá-los do país, levou mais de 40 horas na viagem e aproveitou um período de cessar-fogo dos guerrilheiros.
O veículo usado foi um micro-ônibus fretado pelo clube. Além dos integrantes do time, uma funcionária da embaixada brasileira viajou com eles.
Fumaça na capital do Sudão, Cartum
AP Photo/Marwan Ali
“Quando decidimos sair de Cartum, o presidente do clube afirmou que estaria enviando um ônibus para que pudéssemos sair de lá”, contou Rodolpho Valério Leitão Maia, preparador físico do Al-Merreikh.
Ao longo do trajeto, os atletas e integrantes da equipe técnica contam que foram abordados diversas vezes.
“Quando saímos de Cartum, as duas primeiras horas foram as piores de todas as 40 horas que enfrentamos. Porque todo o confronto estava centralizado na capital. Em função disso, as barreiras eram várias. A gente não conseguia ultrapassar, a não ser que eles parassem a gente”, destacou o preparador físico.
Ruas desertas de Cartum, capital do Sudão, após eclosão de conflito armado no país
Arquivo pessoal/ Paulo Sérgio
Rodolpho ressalta ainda que, em todas as paradas em barreiras na saída da capital do Sudão, uma assustou ainda mais o grupo.
“Os milicianos pararam, o Exército local parou a gente em outra parte e foram momentos muito tensos. Em um deles, quando nós descemos, eles levaram os brasileiros, não lembro se seis ou sete, para trás do ônibus. E não sabíamos o que poderia ter acontecido ali. Ninguém leva um grupo para trás de um ônibus escondido de todos para não fazer nada. Mas, graças a Deus, eles nos liberaram para que prosseguíssemos”, disse Rodolpho.
Situação insustentável
José Esdras e Itamar na chegada ao Brasil após escaparem de conflito no Sudão
Cristina Boeckel/ g1
A decisão de sair no veículo fornecido pelo clube veio após uma série de dificuldades que o grupo estava enfrentando. Eles contam que a situação estava se tornando cada vez mais insustentável.
“Foram 7 dias de muita apreensão e que foram piorando. Começa a falta de tudo, de água, de comida. A apreensão quando o conflito começou a ficar mais sangrento”, afirmou o assistente técnico José Esdras Costa Lopes.
Após as 40 horas em direção à fronteira com o Egito, os brasileiros voltaram a enfrentar problemas. A dificuldade, então, passou a ser entrar no país no meio de uma multidão ávida por escapar.
Civis tentam deixar Cartum em meio a conflito entre duas forças rivais, comandadas por generais do Sudão.
REUTERS – EL TAYEB SIDDIG
“Na fronteira com o Sudão, a gente ficou 10 horas para conseguir entrar. Depois passamos mais dez horas na fronteira. Nossos passaportes desapareceram, e começaram os problemas de infraestrutura”, disse José Esdras.
Os brasileiros que saíram do Sudão destacam que, a partir do momento que conseguiram chegar ao Egito, passaram a ter apoio.
“Você não tem ideia do que é ter milhares de pessoas querendo sair de um país em um momento de guerra e tudo o que pode acontecer nisso aí”, destacou Esdras.
Rodolpho Valério Leitão Maia, preparador físico do Al-Merreikh, chora ao abraçar a filha no retorno ao Brasil
Cristina Boeckel/ g1
Como entre os integrantes do time estava uma funcionária da embaixada brasileira no Sudão, ela fez a diferença na travessia da fronteira.
“Quando sumiram os nossos passaportes, eu fui junto com ela, no meio de uma confusão muito grande, eu levantei o passaporte diplomático, eles me visualizaram, e pudemos entrar no meio daquela confusão toda. Eles não falavam muito inglês, e pudemos falar depois com uma pessoa que fosse responsável. Entrei em contato com as pessoas no Cairo, e tinha um intérprete. E aí as portas começaram a ser abertas. Se não fosse ela, talvez estivéssemos lá até hoje”, conclui Esdras.
O primeiro grupo de brasileiros do Al-Merreikh chegou ao Brasil na última quinta (27), pelo Aeroporto de Guarulhos.
Ônibus foi fretado pelo Al-Merreikh, time do Sudão
g1
No retorno, as malas de cinco brasileiros ainda foram extraviadas na chegada ao Rio de Janeiro.
O atacante Paulo Sérgio destacou que três brasileiros ainda estão no Sudão.
“Foram dias de medo, de angústia. Mas, graças a Deus, foi tudo certo. Estou bastante cansado, exausto. A luta ainda não acabou. Ainda tem 3 meninos lá. A gente está em contato direto para que o Itamaraty faça alguma coisa por eles, já que não fez por nós. Lá começou muito pesado e ainda continua. Mas conseguimos sair de lá pelos nossos próprios meios”, disse Paulo Sérgio
O conflito
Iniciados no dia 15 de abril, os combates na capital do Sudão, Cartum, e nas cidades vizinhas de Omdurman e Bahri são os piores em décadas. Especialistas temem que o conflito divida o país entre as duas facções militares que compartilharam a liderança sudanesa durante a transição política nos últimos anos.
Estes grupos são:
O exército, liderado pelo general Abdel-Fattah al-Burhan, que é comandante das Forças Armadas;
Um grupo paramilitar, comandado pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, que é chefe das Forças de Apoio Rápido (RSF).
Em 2021, as duas facções, então aliadas, orquestraram um golpe militar no país, que passava por um período de instabilidade desde 2019, quando o então líder do país, Omar Bashir, foi destituído do poder após protestos generalizados. Com isso, al-Burhan passou a liderar um conselho de governo e Dagalo, conhecido como Hemedti, se tornou seu vice.
No entanto, desde então, diversos atritos surgiram entre os grupos, principalmente quanto à integração da RSF nas forças armadas e na futura cadeia de comando. Além disso, as facções divergem acerca do apoio a partidos políticos e a grupos pró-democracia.
Quando os combates começaram em 15 de abril, ambos os lados culparam o outro por provocar a violência. O exército acusou a RSF de mobilização ilegal nos dias anteriores, e a RSF disse que o Exército tentou tomar o poder total em uma conspiração com partidários de Bashir.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.