Um ano e meio após condenação de Funai, União e MG, povo Krenak ainda aguarda reparação por violações na ditadura militar


Em outubro de 2022, Justiça deferiu pedido da Funai e concedeu efeito suspensivo à apelação, o que impede que o MPF exija o cumprimento das obrigações determinadas judicialmente. Vestígios do reformatório indígena em Resplendor
Fred Bottrel/TV Globo
Mais de um ano e meio após a Justiça condenar a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo de Minas Gerais por violações dos direitos humanos e civis do povo indígena Krenak durante a ditadura militar e determinar que os réus cumpram uma série de obrigações, pouco avançou.
Em setembro de 2021, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), a 14ª Vara Federal Cível ordenou:
União, Funai e estado a realizar, em até seis meses, cerimônia para reconhecer as violações de direitos dos povos indígenas seguida de pedido público de desculpas ao povo Krenak, com divulgação nos meios de comunicação e canais oficiais;
a Funai a concluir o processo administrativo de identificação de delimitação da terra indígena Krenak de Sete Salões, considerada sagrada para os indígenas, no prazo de seis meses, e a estabelecer ações de reparação ambiental das terras degradas pertencentes aos Krenak;
Funai e o estado de Minas a implementar, com participação do povo Krenak, ações voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak por meio do Programa de Educação Escolar Indígena;
a União a reunir e disponibilizar na internet, em até seis meses, toda a documentação relativa às violações dos direitos humanos dos povos indígenas, para livre acesso do público.
No entanto, no ano passado, a Funai apresentou um requerimento de concessão de efeito suspensivo à apelação, alegando que o prazo de seis meses determinado na sentença “desconsidera os parcos recursos orçamentários, carência de servidores qualificados e a própria natureza complexa dos trabalhos do processo demarcatório”.
Em outubro de 2022, a Justiça deferiu o pedido da Funai e concedeu efeito suspensivo à apelação, o que significa que a sentença não tem efeitos até que o recurso seja julgado. Na prática, isso impede que o MPF exija o cumprimento das obrigações determinadas judicialmente.
No entanto, para o procurador da República Edmundo Antonio Dias, autor da ação do MPF, a situação judicial não impede que União, Funai e o estado de Minas implementem, desde já, as medidas de reparação ao povo Krenak.
“Ao contrário, sua efetivação voluntária, inclusive mediante demarcação do território sagrado de Sete Salões, sinalizaria que o Estado brasileiro não mais compactua com a impunidade de graves violações aos direitos humanos, como as que foram cometidas pela ditadura militar. Isso tem um efeito pedagógico importante, que aponta para um caminho de repulsa a regimes autoritários, mediante a implementação de medidas de não-repetição, inclusive de caráter simbólico”, afirmou.
Ainda segundo o procurador, para o povo Krenak, “a satisfação do seu direito à reparação será tanto maior quanto menor for o tempo de cumprimento da sentença”.
“É extremamente importante que os anciãos que vivenciaram esse período de arbítrio ditatorial vejam a reparação ser realizada”, disse Dias.
O g1 questionou a Funai sobre o andamento das ações, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem. Neste ano, Douglas Krenak, cujo avô foi torturado e morto durante a ditadura militar, foi nomeado coordenador regional da Funai no Espírito Santo e Minas Gerais.
A reportagem também aguarda retorno da União e do governo do estado.
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Violações
De acordo com as investigações do MPF, diversas arbitrariedades foram praticadas contra os povos indígenas em Minas Geris durante a ditadura militar. Entenda as violações aos direitos praticadas ao longo dos anos:
▶️ Em 1969, em Resplendor, na Região do Rio Doce, a Polícia Militar e a Funai instalaram o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, na área do Posto Indígena Guido Marlière, onde viviam os Krenak, para o confinamento de indígenas classificados como “perturbadores da ordem tribal”.
▶️ Eles chegavam ao reformatório, uma espécie de presídio, sem uma “pena” definida, de forma que o tempo de permanência dependia do responsável pelo estabelecimento, Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro, que também é réu na ação.
▶️ Não havia julgamento. A tortura era comum, e os indígenas eram obrigados a fazer trabalhos forçados.
▶️ O local abrigou, até 1972, indígenas de mais de 15 etnias levados de vários estados do Brasil pela Guarda Rural Indígena. Os Krenak passaram também à condição de detidos.
▶️ A primeira turma da Guarda Rural Indígena, também criada em 1969, foi treinada pela PM e era composta por 84 indígenas de diferentes etnias e regiões do país. Eram indígenas punindo e vigiando outros, o que causou desagregação e estimulou conflitos entre eles.
▶️Em 1972, os indígenas que viviam no reformatório foram compulsoriamente transferidos para uma fazenda localizada na cidade de Carmésia, também na Região do Rio Doce, a Fazenda Guarani. Os Krenak, portanto, foram expulsos de suas terras e obrigados a viver a mais de 300 km de distância, em uma espécie de campo de concentração.
▶️ Grande parte das terras antes ocupadas pelos indígenas em Resplendor foi distribuída a posseiros.
▶️ Em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou nulas as transferências das terras habitadas pelo povo Krenak aos posseiros. Os indígenas recuperaram parte do território, mas a área de Sete Salões ficou de fora.
“O que é mais escandaloso é que 50 anos se passaram e estas pessoas não tiveram nenhum apoio psicológico. Elas perderam a lucidez, vivem deprimidas, mudaram seu comportamento. A memória da tortura é muito presente entre o nosso povo”, disse Ailton Krenak, líder indígena, em entrevista ao g1 à época da decisão judicial.
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