‘Medo de perder minha cidadania’, diz quilombola que aponta direitos violados após construção do Centro de Lançamento de Alcântara


Nesta quinta (27), o Brasil está sendo julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela retirada de famílias de suas terras no Maranhão. Danilo Serejo (à esquerda) e Inaldo Faustino são representantes de Comunidades Quilombolas em Alcântara afetadas pela construção do CLA
Danilo Serejo
Moradores de comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, estão no Chile e apontam diversas violações de direitos humanos provocados, segundo eles, pela construção e continuidade dos projetos em torno da Base de Lançamento de Foguetes, referente ao Programa Espacial Brasileiro, ainda na década de 80.
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Sobre essas violações de direitos, o Brasil está, nesta quinta-feira (27), sendo julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O julgamento acontece em Santiago, no Chile.
Veja mais: Por que o Brasil enfrenta julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos
Quem está no Chile é Danilo Serejo, cientista político, peticionário, e líder comunitário na Comunidade Quilombola de Canelatiua, que está sob ameaça de remoção por conta de projetos de expansão do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).
“Sou de uma área pretendida para expansão e que sofre ameaças há 40 anos, que começou pela ditadura e nenhum governo rompeu com isso, nem com a redemocratização. Não temos título de propriedade e nosso principal problema é a insegurança jurídica e o medo em relação ao nosso futuro”, afirma Danilo.
Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão
REUTERS
O líder comunitário diz ainda que existem projetos para a retirada dos moradores, mas, por conta do julgamento desta quinta, a Casa Civil suspendeu os preceitos do último ato que falava para a remoção de 60 famílias, com muitos idosos, e que sobrevivem apenas da pesca e agricultura.
“Tenho medo de passar pela mesma situação das outras comunidades, como a perda de terra, dignidade, perda de todas as condições de cidadania e direitos que nós temos”, conta
Outra liderança comunitária que está no Chile é Inaldo Faustino, como testemunhas. Ele vive na Agrovila Espera e, diferente do Danilo, já foi retirado da antiga comunidade da Espera, por conta da construção da Base de Alcântara e aponta diversas perdas de qualidade de vida desde então.
“Do que tínhamos antes, em relação ao que temos agora, de melhoria é apenas algumas coisas físicas, construção de casas, mas o modo de vida é o mesmo ou pior. Antigamente vivíamos perto de rios, igarapés e mar, e agora estamos longe”
“Antes a gente colhia, plantava e colhia juçara, buriti, para nossa sobrevivência. Na transferência, n´s perdemos porque fomos mandados para uma espécie de comunidade planejada, mas sem os recursos. Acabou que as comunidades passaram a enfrentar dificuldades porque ali não nos garantia sobrevivência plena e recursos naturais. Hoje vivemos de pequena agricultura familiar porque não temos outra alternativa “, descreve o morador.
Segundo as pesquisadoras Francisca Thamires Lima e Ana Karolina Pinheiro, da Universidade Estadual do Maranhão, foram 312 famílias transferidas compulsoriamente, nos anos de 1986 e 1987, da região costeira de Alcântara, para sete agrovilas construídas e planejadas pelos militares.
Uma das comunidades afetadas foi a Marudá, onde 349 habitantes foram removidos, de acordo com o trabalho das pesquisadoras intitulado ‘A implantação do Centro de Lançamento de Alcântara e suas implicações socioculturais’ ocasionada a comunidade de Marudá’.
“É necessário ressaltar que a agrovila [de Marudá] está situada em uma área de propriedade da União e as famílias que ali residem não possuem a titulação das terras em seu nome”, apontam as pesquisadoras.
Julgamento do Brasil
Brasil enfrenta julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos por possíveis violações de direitos humanos contra as comunidades quilombolas de Alcântara (MA)
Reprodução/Redes sociais
O julgamento do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) começou na quarta-feira (26). Maria Luzia Diniz, de 68 anos, que reside na agrovila Marudá, foi uma das testemunhas ouvidas por membros da corte em Santiago.
Em depoimento emocionado, a maranhense relatou como era o período antes do início da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara e o período que mais de 300 famílias viveram após serem remanejadas. Ela disse que, devido a situação, as famílias ganharam títulos de ‘miseráveis’.
“Foi muito difícil aceitar ser realocado para outro lugar. Não concordávamos em nada e não era satisfatório para ninguém. Foi triste ver pessoas chorando e desesperadas sem saber para onde ia. Trouxeram a gente para as agrovilas, passamos fome, ganhamos título de miseráveis, porque a gente tinha um patrimônio muito rico e, de repente, perdemos tudo.”, disse.
Maria Luzia Diniz, de 68 anos, foi uma das moradoras que foi remanejada para outras áreas devido à instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA)
Reprodução/Redes sociais
Descendentes de quilombolas e indígenas, a família de Maria Luzia foi uma das últimas a serem retiradas da área, em 1986. A maranhense alegou, em depoimento, que até hoje as famílias não receberam os documentos que dão posse para as casas que foram construídas para os remanejados.
“A gente vive até hoje com sacríficos naquele lugar. Fizeram promessas que nós iríamos para um lugar melhor. Deram uma casa de alvenaria, quando a gente recebeu, quando chovia a gente tinha procurar um lugar para dormir”, explica.
Maria Luzia contou que as famílias, que viviam do extrativismo e da pesca, foram colocados em áreas improdutivas e distante do mar o que influenciou, diretamente, na sobrevivência das famílias, que chegaram a passar fome. A dona de casa reforçou ainda que os remanejados não tiveram acesso à saúde e a educação, como foi assegurado durante o acordo.
“Tivemos que nos conformar e aceitar essa condição. Vivíamos do extrativismo, roça e pesca e isso foi arrancado de nós. Fizeram vilas perto da praia, para as famílias dos militares da aeronáutica e os moradores foram realocados em áreas mais distantes”, explicou.
Praça central do município de Alcântara no Maranhão.
Divulgação/Governo do Maranhão
Ainda em depoimento, a maranhense disse que, devido ao remanejamento, as famílias deixaram de ter acesso à um cemitério, onde estão enterrados os ancestrais da comunidade, e foram impedidos de entrar no lugar devido aos riscos.
“Não tivemos nem oportunidade nem de visitar o cemitério dos nossos ancestrais, dos nossos pais, deixamos tudo para trás e até hoje, não recebemos dinheiro de nada. Já são mais de 40 anos e não foi resolvida essa questão e mesmo assim, ainda dói muito”, finalizou.
Alcântara e a Base de Lançamento de Foguetes
Alcântara é o município brasileiro com maior número de comunidades quilombolas, segundo lideranças locais
CONAQ
Município com 22 mil habitantes, Alcântara fica numa península com localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites. Próximo à linha do Equador, o centro – inaugurado pela Força Aérea Brasileira (FAB) em 1983 – possibilita uma economia de até 30% no combustível usado nos lançamentos.
A construção da Base de Lançamento de Foguetes, porém, levou um território de 52 mil hectares a ser declarado como de “utilidade pública”, segundo a CIDH, e as disputas territoriais seguem até hoje.
Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades.
O que está sendo julgado?
Vista área do Aeroporto de Alcântara, localizado na área do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA)
Divulgação/Agência Espacial Brasileira
A principal violação denunciada pelas organizações sociais e representantes locais é a remoção das 312 famílias quilombolas para a construção da base, a qual a CIDH se referiu como “usurpação do patrimônio coletivo” das comunidades. A Corte também analisa a questão da titularidade do território – concessão do direito de posse de uma área – e da reparação às comunidades.
A Constituição Federal de 1988 assegura o direito aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras, à propriedade definitiva de seus territórios. Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras.
O caso chegou ao tribunal internacional após organizações peticionarem a denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também ligada à OEA. O órgão recomendou em duas ocasiões ao Estado brasileiro que fosse feita a titulação do território, a reparação financeira dos removidos e um pedido de desculpas públicas.
Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), chegou a publicar um relatório apontando que mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados em favor dos quilombolas, mas o processo não foi encaminhado.
Como as recomendações não foram cumpridas, a Comissão levou o caso à Corte em janeiro de 2022. Esse tópico tem relação principalmente com um projeto de expansão da CLA, incentivado por um acordo entre Brasil e Estados Unidos assinado em 2019.
O que é a corte?
A Corte é uma instituição autônoma ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem como objetivo aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992.
É um dos tribunais regionais de proteção dos direitos humanos, ao lado do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
O que diz o governo brasileiro?
A Força Aérea Brasileira (FAB), responsável pela base, afirmou que há no caso uma “sobreposição geográfica de duas políticas públicas”.
“Uma voltada ao atendimento do direito constitucional relacionado ao reconhecimento de propriedade e titulação das comunidades remanescentes de quilombos, e outra voltada às demandas por um espaço-porto brasileiro”.
A Aeronáutica afirmou ainda que o assunto foi objeto de conciliação na Câmara de Conciliação da Administração Federal (AGU) em 2009, porém o resultado desse trabalho não foi implementado até a presente data. “A demora do Estado Brasileiro nesse processo ensejou a submissão das reivindicações da comunidade supostamente afetada àquela egrégia Corte”, diz.
“A Força Aérea Brasileira, enquanto Instituição que compõe a República Federativa do Brasil, está trabalhando conjuntamente com as demais Instituições envolvidas (MRE, AGU, MDHC, MIR) no processo de defesa do Estado Brasileiro perante à Corte IDH e reitera o firme propósito de alcançar um resultado que atenda, de forma equilibrada, os direitos das comunidades quilombolas de Alcântara e as necessidades do Programa Espacial Brasileiro, o qual certamente trará benefícios socioeconômicos para todo o município de Alcântara e região.”, disse a nota.

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