‘Me receitou zolpidem e me mandou dormir’: pacientes relatam descaso de médico indiciado em SC

A gestação deixou algumas marcas na vida de Ana Cláudia (nome fictício). Em 2017, ela procurou um cirurgião plástico para melhorar a aparência dos seios, que a incomodavam desde o nascimento da filha. Em uma clínica de Florianópolis, ela conheceu Marcelo Evandro dos Santos, com quem resolveu realizar o procedimento. Desde então, ela sofre, não só com a insatisfação pelo resultado da cirurgia, mas com transtornos emocionais causados pelo procedimento.

Na segunda-feira (14), Marcelo Evandro dos Santos foi indiciado por causar lesões gravíssimas e permanentes em pacientes da capital catarinense. Segundo a investigação, que começou em março deste ano, ele cometeu erros que causaram “deformidades permanentes” em uma paciente da capital catarinense.

De lá para cá, ao menos 27 mulheres já se manifestaram, alegando serem vítimas de algum erro cometido pelo médico em operações estéticas. Segundo a Polícia Civil de Santa Catarina, além da vítima que deu origem ao inquérito, outras duas já registraram ocorrência.

Cirurgião plástico foi indiciado por causar “deformidades permanentes” em uma paciente de Florianópolis (foto ilustrativa) – Foto: Freepik/ Reprodução/ ND

Pacientes relatam ofensas e mutilações após procedimentos

A empresária Karoliny Matias, de 35 anos, passou pela mesma situação. Buscando melhorar o aspecto dos seis depois de amamentar dois filhos, consultou com diferentes cirurgiões plásticos até chegar ao consultório do médico Marcelo Evandro. O resultado, assim como no caso de Ana Cláudia, não foi o esperado.

O primeiro contato da Karoliny com o médico foi através das redes sociais. Quando foi à consulta, ela relatou à reportagem que foi “muito bem atendida” e percebeu “uma simpatia surreal” da parte do cirurgião.

“Dentre os três médicos com quem consultei, escolhi ele para realizar meu sonho. Até brinde fizemos quando fechamos o procedimento”, contou.

A empresária recebeu uma herança do pai e usou parte do valor para custear a cirurgia plástica, um total de R$ 33 mil à vista. Ela pagou pela mastopexia (cirurgia para reposicionamento das mamas) com prótese de silicone e, por conselho do médico, uma lipoaspiração da gordura na região de axila.

Primeiro contato de Karoliny com Marcelo Evandro dos Santos aconteceu pelas redes sociais – Foto: Arquivo pessoal/ Reprodução/ ND

O procedimento, que dura em média quatro horas, demorou nove para ser concluído. Assim que teve alta, na manhã seguinte, começou o sofrimento da empresária. Dia após dia, as dores foram aumentando e os resultados, cada vez mais distantes do que o esperado.

“Eu olhava meu peito muito feio, sem forma. Depois de sete dias, nada de mudanças, continuava reto e com muita dor. Quando fui tirar meu dreno, minha auréola estava com feridas e ele me disse que era normal”, relatou com tristeza à reportagem.

Karoliny fez fisioterapia e massagens modeladoras durante um ano para tentar dar contorno aos seios que, segundo ela, ficaram achatados, disformes e de tamanhos diferentes. As cicatrizes ficaram com caroços de pele repuxada. Os mamilos, sem contorno.

Em 2017, Marcelo Evandro dos Santos não tinha registro para atuar como cirurgião plástico – Foto: Redes Sociais/ Reprodução/ ND

Atendimentos ocorreram fora de clínica, conta paciente

O caso de Ana Cláudia não é diferente. Ela chegou até Marcelo Evandro pela recomendação de uma paciente, quando estava na clínica de outro médico. Mas não foi naquela clínica que os atendimentos aconteceram. As consultas de Ana Cláudia aconteceram na casa de Marcelo, próximo à Avenida Beira-Mar Norte, em Florianópolis.

“Ele disse que naquela clínica só fazia implante capilar, que não poderia me atender lá. Perguntei o que faríamos e ele disse: vem no meu apartamento na Beira-Mar. Fomos, eu, minha mãe, meu marido e meu padrasto”, relatou.

O objetivo de Ana Cláudia era realizar mastopexia com prótese, mas o médico disse que faria “um preço bem bom” se outros procedimentos fossem realizados de uma vez só.

“Chegando lá, ele disse que dava pra mexer nessa ‘mini pochetezinha’ [região da barriga] que eu tinha, dá pra mexer no quadril, no lado do joelho, no braço”, disse ela à reportagem.

O médico se dispôs a fazer um pacote para a paciente. Ao todo, Ana Cláudia pagou R$ 25 mil em dinheiro e fez mais três cheques de R$ 3 mil, incluindo hospital e materiais de pós-operatório.

O procedimento foi realizado no Hospital e Maternidade Dr. Carlos Correia. Depois da cirurgia, Marcelo Evandro dos Santos disse à Ana Cláudia que também tinha “refeito o umbigo” e uma hérnia que ela tinha.

Os atendimentos do pós-operatório foram realizados na casa da paciente e em uma clínica no bairro Coqueiros, na área continental de Florianópolis. A paciente entrou na Justiça contra o médico.

“Ele me receitou zolpidem e me mandou dormir”, diz paciente de médico indiciado em Santa Catarina – Foto: Freepik/ Reprodução/ ND

“Me receitou zolpidem e me mandou dormir”, conta paciente

Karoliny, outra paciente insatisfeita com o resultado do procedimento, procurou o médico inúmeras vezes, até o momento em que começou a ser coagida por ele. “Ele me ligou um dia pra dizer que iria me processar se eu não tirasse um comentário que fiz nas redes sociais, criticando a cirurgia realizada por ele”, contou à reportagem.

A paciente conta que o médico nunca reconheceu os erros no procedimento e, quando questionado sobre a aparência dos seios dela, ele sempre dizia que estavam “normais”.

“Teve um dia que ele me ligou e falou que não aguentava mais. Me receitou zolpidem e me disse para tirar os espelhos de casa e ir dormir”, lembra a empresária, com tristeza.

A denúncia de Letícia Mello realizada em fevereiro deu início à investigação que indiciou o profissional por lesão corporal gravíssima. A série de reportagens veiculadas pela imprensa a respeito da postura do médico encorajaram Karoliny a registrar uma ocorrência na polícia civil. Nesta semana, ela se juntou a outras três mulheres, que também foram vítimas do cirurgião plástico.

“O único alívio é que isso veio à tona, foi onde vi que não estava louca, que eu não estava ansiosa. Eu vi que tinha erros sim que ele cometeu e isso acalma um pouco por não ser a única”, desabafou.

Umbigo de Ana Cláudia foi movido para região acima do local original, onde ela tinha um piercing – Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal/ ND

Marcelo Evandro dos Santos foi condenado a pagar indenização por danos morais

Ana Cláudia entrou na Justiça contra o cirurgião plástico no mesmo ano em que o procedimento foi realizado. Ele ligou algumas vezes para a paciente, na tentativa de convencê-la a retirar a causa. Marcelo se ofereceu refazer os procedimentos pela metade do valor original, o que Ana Cláudia negou.

“Eu pedi ajuda para ele e ele disse que não ia me ajudar. ‘Se tu pagar, eu arrumo’, ele me disse. Saí dali e fui atrás de um advogado para saber os meus direitos. Aí o médico entrou em contato comigo me oferecendo um desconto e eu disse que não”, contou a dona de casa.

Em dezembro de 2023, Marcelo Evandro dos Santos foi condenado a indenizá-la por “reparação por danos materiais” e “reparação do dano estético”. Os valores, somados, chegam a R$ 9.655 — cerca de 40% do que ela pagou ao médico pela cirurgia.

Hoje, ela vive com sequelas na região dos glúteos, onde há marcas de dreno e furos causados pela sucção de gordura. Nos seios, a prótese de silicone de 375ml causa incômodo porque está solta sob a musculatura.

“Eu entrei em depressão, mal saía de casa com minha filha, ganhei peso. Se não fosse a minha mãe, meu marido e minha filha, eu não sei o que seria de mim”, lamentou a paciente.

Mais de 20 mulheres já manifestaram terem sofrido algum tipo de mutilação em procedimentos estéticos realizados pelo cirurgião plástico de Florianópolis – Foto: Redes Sociais/Reprodução/ND

Entidades fiscalizadoras abrem processos para apurar conduta de médico indiciado

O Ministério Público de Santa Catarina abriu uma investigação para apurar a conduta do médico no exercício da profissão. O MPSC também irá procurar o CRM-SC (Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina) para averiguar se o médico tem especialidade para fins de cirurgia plástica e se o procedimento “X-Tudo” é permitido e fiscalizado pelo Conselho.

Nesta quinta-feira (17), o Procon-SC  instaurou um processo administrativo contra o cirurgião plástico pelos danos causados às vítimas. O órgão de defesa ao consumidor já colheu o depoimento de Leticia Mello, vítima que deu origem ao caso, e apura denúncias de pelo menos outras 20 vítimas lesadas pelo médico.

O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina abriu uma sindicância para apurar a conduta do profissional. O procedimento corre em sigilo, mas a reportagem do ND Mais apurou que esta não seria a primeira que o profissional é investigado pelo órgão fiscalizador.

Em 2020, Marcelo Evandro dos Santos teve o registro profissional suspenso, por 30 dias, por “causar dano à paciente por imprudência ou negligência”, “delegar a outros profissionais atribuições exclusivas de médicos”, “deixar de usar todos os meios disponíveis em favor do paciente” e “anunciar títulos específicos que não possa comprovar e especialidade para a qual não esteja qualificado”.

No ano anterior, ele foi punido com uma censura pública, novamente, por “anunciar títulos específicos que não possa comprovar e especialidade para a qual não esteja qualificado”. Em 2017, ele recebeu outra censura pública, mas por “praticar atos danosos aos pacientes por imperícia”, “atribuir seus insucessos a terceiros e a circunstâncias ocasionais” e, novamente, por apresentar títulos que não possui.

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Médico indiciado mostrava procedimentos nas redes sociais – Redes Sociais/ Reprodução/ ND

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Marcelo Evandro bloqueou perfil nas redes sociais após indiciamento na segunda-feira (14) – Redes Sociais/ Reprodução/ ND

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Cirurgião mostra bolas de gordura retiradas de paciente durante operação – Redes Sociais/ Reprodução/ ND

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Letícia Mello sofreu lesões irreversíveis após cirurgias plásticas – Arquivo pessoal/ Reprodução/ ND

Contraponto

Em nota divulgada também nesta quinta-feira, a defesa do médico informou que ele possui “completa formação médica com especialidades na área de cirurgia geral e cirurgia plástica, com seus títulos devidamente registrados”.

O documento ainda destaca que “todas as cirurgias, propostas e realizadas, são previamente explicadas e aceitas por todos os pacientes, que assinam contrato de prestação de serviços, bem como termo individual de consentimento”.

A defesa destaca que “jamais foram realizadas cirurgias em número excessivo, como divulgado (oito a 12 procedimentos), e sim, quando muito, dois a três procedimentos, como por exemplo, lipoaspiração, mamoplastia e preenchimento de gordura (lipoenxertia)”.

Quanto aos possíveis erros cometidos pelo médico, a nota alegra que “o volume anual de procedimentos realizados pelo Dr. Marcelo suplanta os 300 casos, sendo o número de intercorrências e/ou complicações inferiores a 1%, o que estatisticamente está de acordo com a literatura médica especializada”.

“Não resta dúvida que o Dr. Marcelo Evandro dos Santos, prestará todos os esclarecimentos pertinentes aos casos nos autos dos processos judiciais e administrativos, e que confiante na Justiça, culminará pela mais completa e irrestrita absolvição e improcedência dos pedidos”, ainda diz.

A defesa de Marcelo Evandro dos Santos finaliza dizendo que conta com a “futura responsabilização e condenação dos pacientes pelos prejuízos materiais e imateriais provocados, pelas suas matérias irresponsáveis e sensacionalistas”.

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