Pai paga faculdade de medicina da filha na Bolívia vendendo água de coco e jovem volta à cidade natal pelo Mais Médicos


Jorge Felipe vendia água de coco para ajudar a filha, Nayara Felipe, a se formar em Medicina fora do Brasil. A médica hoje trabalha no programa Mais Médicos em Santa Leopoldina, no Espírito Santo. Aposentado Jorge Coutinho Felipe vendia água de coco para ajudar nos estudos da filha na Bolívia. Jovem se formou em Medicina
Arquivo pessoal
“Compre água de coco e forme uma médica”. Esta era a frase estampada no carrinho do aposentado Jorge Coutinho Felipe, que por seis anos vendeu água de coco nas ruas de Santa Leopoldina, na Região Serrana do Espírito Santo, para pagar a faculdade de medicina da filha na Bolívia. A história mobilizou comunidade local e quase dez anos depois Nayara Cláudia Ramos Felipe, de 32 anos, se formou e voltou para retribuir o apoio dos moradores, exercendo a profissão na cidade natal.
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”Meu pai fazia tudo quanto é tipo de bico. Vendia biscoitos em uma bicicleta, além de outros produtos. Por último, o que ele vendeu foi a água de coco na cidade, que foi uma das coisas que mais me ajudou”, contou ao g1.
Antes de ser médica, Nayara foi técnica de enfermagem e chegou a estagiar em um hospital da Grande Vitória. Neste período, os amigos próximos comentaram sobre a possibilidade de estudar medicina fora do país, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.
Nayara Cláudia Ramos Felipe, de 32 anos, no segundo ano do curso de Medicina, na Bolívia. Jovem saiu do Espírito Santo e teve o apoio dos pais na trajetória.
Arquivo pessoal
“Eu decidi arriscar e os meus pais abraçaram o meu sonho como eles puderam. Eles não tinham condição nenhuma de me ajudar e ajudaram. Comecei minha graduação em 2013 e, no início, eu dependia 100% dos meus pais até conseguir me adaptar, conseguir bolsas e também trabalho nas horas vagas”, contou Nayara.
Com o início da graduação em 2013, na Universidad Franz Tamayo (Unifranz), na Bolívia, Nayara trabalhou como babá, atendente em restaurantes, entre outras funções. No Brasil, a mãe da estudante, Jussara Ramos Felipe, também trabalhava como servente em uma escola do município, e ajudava a filha financeiramente.
Como tradição, a festa de formatura do curso é realizada antes do período de internato, que pode ser associado à residência médica que os estudantes fazem no Brasil. No caso da jovem, o evento foi realizado em 2017 e o período anterior à cerimônia foi marcado por apreensão. “Será que meus pais conseguirão vir?” era uma das dúvidas de Nayara. Mas deu certo.
Pais da médica Nayara Cláudia Ramos Felipe se organizaram e viajaram para a Bolívia para ver a filha se formar. Família é do Espírito Santo
Arquivo pessoal
“Na festa, eu tive a oportunidade de levar o meu pai, a minha mãe e uma tia. Foi maravilhoso. Eles andaram pela primeira vez de avião. Em algum momento eu acreditei que talvez não seria possível, mas, por outro lado, eu vi tanto esforço na parte deles para juntar dinheiro e comprar passagens. Acredito que Deus permitiu isso porque saberia o que aconteceria depois.”
Da Bolívia para Santa Leopoldina
Enquanto Nayara se dedicava ao curso superior de medicina na Bolívia, o pai dela aguardava a volta da filha para Santa Leopoldina para cuidar dele e atender a comunidade.
“As pessoas riam e meu pai dizia ‘olha, minha filha vai voltar médica, hein’. Quando eu recebi a foto dele com a plaquinha pedindo para comprar coco, eu percebi o quanto eu era privilegiada. Às vezes, as pessoas desacreditam nos nossos sonhos, principalmente quando somos de família humilde, sem condições ou influência social”, comentou.
Nayara Cláudia Ramos Felipe e o pai, Jorge Coutinho Felipe. Médica se formou em Medicina com ajuda das vendas do pai.
Arquivo pessoal
O retorno da filha do seu Jorge aconteceu em março de 2020, no auge da pandemia de Covid, e uma notícia pegou a família de surpresa: o aposentado foi diagnosticado com um câncer no pulmão em estágio terminal.
“Eu cuidei do meu pai de março ao dia 10 de maio, quando ele morreu. Ele teve o prazer de me ver formada, me ver médica e de me ver voltando para Santa Leopoldina. Tudo aconteceu como ele dizia”, disse.
‘Eu sou porque nós somos’
A palavra ubuntu tem origem nos idiomas zulu e xhosa, do sul da África, e tem vários significados. Um deles é “eu sou porque nós somos”, o que reflete os ideais da filosofia, baseada na ética da coletividade e na convivência harmoniosa com o outro. Esta é uma das frases que a médica usa como mantra ao se ver médica.
”Isso tem muito a ver com resistência. Independente da minha raça, da classe social, eu consegui resistir e chegar até aqui. Quando eu me vi médica, trabalhando no Brasil, eu senti que, independente de qualquer coisa, a gente pode ser o que a gente quiser. E sinto o mesmo quando vejo uma mulher negra, periférica, que vem de uma classe social mais baixa, ocupar cargos, lugares, cargos de lideranças”, destacou.
Nayara Cláudia Ramos Felipe se formou me Medicina na Bolívia e retornou para trabalhar em Santa Leopoldina, no Espírito Santo
Arquivo pessoal
Em dezembro de 2023, a médica passou a integrar o programa do governo federal Mais Médicos, atendendo na cidade natal.
”Tem sido uma experiência incrível e de aprendizagem dia após dia. Todos os dias eu vejo casos diferentes. O programa veio como um bálsamo para trazer mais humanidade e um olhar especial para as pessoas porque ele chega em comunidades onde médicos que trabalham nas capitais não querem trabalhar. Ou seja, o Mais Médicos existe para cobrir as vielas e espaços na saúde pública”, acrescentou.
Ainda segundo Nayara, o dia a dia de um médico que integra o programa é marcado por atendimentos que vão do pediátrico ao geriátrico.
A médica Nayara Cláudia Ramos Felipe trabalha no Programa Mais Médicos, em Samta Leopoldina, no Espírito Santo
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“Fazemos o pré-natal, cuidamos da gestante, da criança e também do idoso. Cuidamos da família. Além disso, é um programa que oferece muitas capacitações e especializações em medicina de família e comunidade. Não estamos cuidando das pessoas de forma leviana; estamos sendo capacitados com aulas semanais, encontros mensais e trimestrais. Somos 100% acompanhados”, destacou.
Foi entre uma consulta e outra, que a Nayara se emocionou com um paciente. Na ocasião, o homem foi atendido e no final do atendimento começou a chorar. A médica perguntou o que havia acontecido e o rapaz disse que havia conhecido o pai dela.
“Ele disse que meu pai sempre comentava que eu voltaria e trabalharia na cidade. Ficou emocionado ao ver que aquilo tinha acontecido e disse que seu Jorge ficaria muito feliz se estivesse vivo. Foi um dos relatos mais emocionantes e sei que ele estava certo. Meu pai deve estar muito feliz e orgulhoso”, finalizou.
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