Filhas que deixaram pais em casas de repouso desabafam sobre julgamento da sociedade: ‘não é abandono’; VÍDEO


Elas compartilharam as situações que viveram, incluindo pontos negativos como maus-tratos, e positivos de melhoria no relacionamento. Psicólogo afirma que decisão de colocar o idoso em uma instituição de longa permanência é uma maneira de garantir a segurança física e mental dele e da família. Filha que deixou pai em casa de repouso, em Cubatão, fala sobre os benefícios da escolha
A decisão de colocar os pais em asilos gera muitas dúvidas, e também conflito interno por causa do julgamento da sociedade que muitas vezes ‘condena’ os filhos por ‘serem ingratos com aqueles que sempre cuidaram deles’. O g1 ouviu pessoas que optaram por deixar familiares em casas de abrigo. Elas compartilharam as experiências que viveram, incluindo pontos negativos como maus-tratos, e os positivos de melhoria no relacionamento.
A promotora digital Patrícia Santos, de 35 anos, passou por momentos difíceis com o pai no Lar Abraço, em Cubatão (SP). Uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) atendeu uma solicitação do Ministério Público e determinou que todos idosos fossem removidos do local e levados ao asilo Lar Fraterno, onde o pai de Patrícia está no momento. A entidade que administrava o Lar Abraço passou a ser investigada por pegar empréstimos em nome dos assistidos. Além disso, um relatório da câmara municipal apontou 92 irregularidades na instituição.
Patrícia explicou que, nesse abrigo que era investigado, eles não deixavam ela ver o pai. “Eles falavam que não, que não podia ver por causa da situação da Covid-19, que eu não poderia falar com ele”.
Ela relembrou que o pai caiu dentro da unidade, quebrou o pulso, e que ninguém informou ela sobre o ocorrido, vindo a saber da situação por uma conhecida que estava no hospital no momento em que ele estava sendo atendido. “Quando entrei em contato eles me confirmaram, mas não sabiam dizer como ele tinha caído, ninguém viu como aconteceu e, quando consegui entrar lá para vê-lo, as duas únicas vezes foram porque tinha encaminhado um e-mail à promotoria e aí liberaram minha visita”.
Patrícia ao lado do pai durante uma das visitas para ele no asilo em Cubatão (SP)
Arquivo Pessoal
A promotora digital afirma que nas únicas ocasiões em que conseguiu visitar o pai ele estava dopado de medicamentos. “Comecei a ficar preocupada, entrar em contato com as pessoas que eu conhecia para ver se conseguiam me ajudar”, diz.
“Ele ficou refém daquela situação, e eu também por não ter condição de cuidar dele, de pagar outro lugar, e aí a gente ficava desesperado porque às vezes pedia para falar com ele [por chamada] de vídeo e eles não deixavam. Foi muito desesperador, [mas] quando tiraram ele de lá e voltou ao outro lar foi um alívio”, disse.
Decisão
Como o pai sempre foi alcóolatra, Patrícia disse que antes de morar no abrigo ele estava em situação de rua. “Ele nunca foi presente, às vezes vinha me visitar, então a gente não tinha um contato tão próximo. Não tive medo de colocar ele no abrigo porque a gente às vezes ficava meses sem saber onde ele estava e no abrigo a gente sabe que ele está seguro”, explica.
A promotora digital explicou que tentou levar o pai para ficar na casa dela, mas que não deu certo. “Eu tinha preconceito, vou falar a verdade, tinha uma visão totalmente errada. Quando a gente pensa em asilo, pensa que é um lugar cruel, mas no meu caso eu não tenho condição, moro na periferia, meu salário dá para manter apenas o meu filho”.
Pai da Patrícia durante momentos de lazer no asilo onde mora em Cubatão (SP)
Arquivo Pessoal
“Esse lar que ele está agora é maravilhoso, nunca tive problemas, pelo contrário, fazem questão da gente ir lá visitar e estar junto. Hoje em dia eu tenho uma visão totalmente [diferente] do que eu imaginava que era, acho que a família que não consegue cuidar, que não tem paciência, tempo e condições igual eu, é uma ótima opção quando é um lugar sério”, afirma.
Patrícia conta que é sempre julgada pelas pessoas quando comenta que o pai mora em um lar de idosos. “Já olham com outro olhar, como se eu fosse uma bruxa. Falam que vou envelhecer, mas as pessoas não sabem as condições que a outra pessoa tem em casa. Eu trabalho, meu filho vai à escolinha. Como que eu trago para casa se não tenho condição de olhar? Nas condições que tenho nos dias de hoje pode faltar até alimento. Aqui em casa é tudo contadinho”, lamenta.
‘Não era abandono’
A maquiadora Priscila Machado Galvão, de 41 anos, também foi alvo de críticas e julgamentos após decidir colocar a mãe em uma clínica de repouso. Ela contou que assim que mudou para Bertioga, no litoral de São Paulo, a mãe, que morava em Curitiba (PR), foi diagnosticada com demência vascular.
“Certa vez a trouxe para minha cidade para cuidar dela quando estava com pneumonia. Foram muitas idas ao hospital por diversos motivos. Queria que ela morasse em Bertioga, mas nunca aceitou, então ela passava meses comigo na minha casa e meses na casa dela em Curitiba”, diz.
Priscila conta que uma cuidadora ficava com a mãe durante o dia e o irmão ia dormir com ela, mas como ela era extremamente difícil, não aceitava a cuidadora. “Mandava a mulher embora e gritava com ela, dizia que nunca mandariam nela. Durante a pandemia, ficamos com muito medo da minha mãe pegar Covid-19 e tiramos a cuidadora”.
Priscila foi muito criticada por colocar a mãe para morar em uma casa de repouso, em Bertioga, SP
Arquivo Pessoal
Em dezembro de 2020, a mãe da maquiadora foi até a casa de uma vizinha dentro do condomínio em que morava, caiu e bateu a cabeça em uma grade. “Levou muitos pontos, trouxe ela para Bertioga, mas a demência estava avançando. Certa vez de madrugada ela caiu em cima da nossa mesa de vidro. Coisas simples se tornavam obstáculos perigosos e tudo era novo para nós”.
Com medo de que acidentes pudessem acontecer, ela e o marido desligavam o gás ao sair de casa para trabalhar e pediam para que uma vizinha olhasse, pois até para trocar o canal da TV ela tinha dificuldade. “Eu tinha muito medo que ela se machucasse, ela não podia mais ficar sozinha. Até que entendemos que o melhor seria uma casa de repouso porque lá teria cuidados 24h”.
Segundo a maquiadora, o valor para deixar a mãe em uma casa de repouso seria mais acessível do que contratar três cuidadores de idoso para se revezar ao longo do dia. “Eu chorava sem parar, voltei a fazer terapia, pois não sabia se estava fazendo o certo e me culpava demais. Algumas pessoas falavam que casa de repouso era ótimo, outras que jamais teriam coragem de abandonar um pai e uma mãe em um lugar desses”.
Ela colocou a casa da mãe para alugar e, com o dinheiro, pagava as mensalidades da casa de repouso que, segundo a maquiadora, foi escolhida com carinho e tinha câmeras 24h que poderiam ser consultadas em tempo real por um aplicativo. Em uma das visitas, Priscila encontrou a mãe maquiada e bastante sorridente após banho e depilação.
“Que alívio vê-la bem. Após tantas críticas e um choro desesperador, enfim entendi que a casa de repouso não era abandono. Após algumas semanas minha mãe realizou o grande sonho e começou a namorar um senhor muito simpático. A dona da casa tinha até que vigiá-los senão os dois queriam pegar fogo. Eu nunca tinha visto minha mãe beijar na boca até então”, comemora.
Morando na casa de repouso, mãe da Priscila realizou o sonho de ter um namorado em Bertioga, SP
Arquivo Pessoal
No fim de maio de 2021, a mãe dela teve uma piora significativa dos sintomas da demência e o geriatra solicitou uma ressonância da cabeça, mas não deu tempo de reverter a situação. “Ela foi internada às pressas e foi descoberto um coágulo enorme devido a queda que aconteceu seis meses antes. Nenhuma das radiografias tiradas no dia da queda e um mês após detectaram o coágulo se formando”.
“No dia 25 de junho de 2021 ela faleceu nas minhas mãos após a minha oração. Sinto muita paz porque sei que fiz tudo que pude pelo bem-estar dela, e antes dela partir, realizou o grande sonho que era namorar. Antes e durante a estadia dela na casa de repouso fui duramente criticada por muita gente, inclusive por amigas”, relembrou.
Priscila disse que imagina a quantidade de famílias que sofrem sem saber o que fazer porque descartam a solução de colocar os pais em casa de abrigo. “A sociedade ainda reprova por puro preconceito. Obviamente tem casas ruins, assim como escolinhas ruins para crianças, mas existem vários critérios para que se possa escolher um lugar seguro e confiável”.
“Quando publiquei nas redes sociais os vídeos dela dançando e namorando, muitas pessoas falavam a mesma coisa: ‘Como pode alguém jogar um pai ou uma mãe nestes lugares?’. Definitivamente, casa de repouso não significa abandono. Não sabemos o dia de amanhã e só quem convive com idosos com problemas de saúde, e que precisam de muitos cuidados, consegue entender como é difícil viver tudo isso. Espero que daqui alguns anos estejamos mais preparados, já que assim como eu e meu esposo, muitos casais não tem filhos e esses lares poderão ser o nosso futuro lar”, afirmou.
Segurança física e mental
Para o psicólogo e professor de Saúde Pública, Paulo Muniz, a vida é feita de fases e a primeira delas é a infância. “Ela está sendo, em tese, cuidada pelos pais, com exceções que a gente sabe que tem, crianças abandonadas e outras questões que impedem que os pais cuidem das crianças, mas, de uma maneira geral, mas não única, os pais cuidam dos filhos”.
O psicólogo reforça que em um determinado momento da vida, as pessoas vão perdendo sua capacidade de cuidar de si e, por consequência, cuidar dos outros. “Isso não é regra geral até porque nós temos hoje mais informações, mais possibilidades de tratamentos, cuidados na área da velhice que possibilitam uma longevidade maior, mas, de uma maneira geral, essa possibilidade de viver mais também tem causado algumas questões importantes como, por exemplo, o desenvolvimento de demências que trazem dificuldades nas relações entre os idosos e seus filhos e netos”.
Segundo Muniz, a decisão de colocar o idoso em uma instituição de longa permanência é uma maneira de garantir a segurança física e mental dele, e também da família que cuida, mas que há exceções. “De um modo geral, colocar um idoso em uma instituição é cuidar melhor. As dúvidas vão sempre surgir porque nós não somos educados e não somos criados, e a sociedade não é preparada para lidar com o momento da separação, é quase que antecipar a morte da pessoa você tirar ela da sua casa e colocar em um lugar mais distante, longe dos seus olhos, do seu cuidado, então esse julgamento que a sociedade faz é por falta de conhecimento, por pura ignorância e por preconceito por não conhecer, por exemplo, como é que funciona”.
Ele destacou que a melhor opção seria colocar cuidadores para que o idoso seja cuidado em casa, mas que nem sempre a família terá recursos financeiros para que isso ocorra. “Uma outra questão é que nós não somos criados para cuidar dos nossos pais no momento de doença, de extrema vulnerabilidade. Pai e mãe são aquelas figuras que cuidam da gente, então no nosso imaginário, na nossa cultura, pai cuida do filho sempre, e quando isso se inverte no decorrer do tempo, muitas pessoas não têm condição psicológica”.
Muniz recomenda que os familiares conversem com pessoas que já tiveram essa experiência e necessidade de colocar o seu parente idoso em uma instituição. “É sempre muito importante visitar várias instituições para ter níveis de comparação, o que é bom em uma, o que é bom na outra. De que forma posso ter acesso, de que forma posso ter informação, de que forma vejo que essa instituição vai cuidar daquela pessoa que eu amo e vou colocar dentro dela. Visitar várias instituições é primordial”, finaliza.
Priscila relatou que sempre encontrava mãe alegre durante as visitas na casa de repouso em Bertioga, SP
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